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Pak entrevistas - Mestre Chen Ming Wah

Mestre Chen Ming Wah

Nascido em agosto de 1954 e, natural de Taiwan (Formosa), mestre Chen é um dos idealizadores da Federação Paulista de Kung Fu. Foi pioneiro nas relações entre Brasil China, para que o governo chinês pudesse reconhecer o kung fu praticado no Brasil, como modalidade autentica.

 

Nessa entrevista, o mestre Chen conta um pouco de sua história, para o aluno e amigo de longa data, o mestre Gilmar Dantas.

MESTRE GILMAR: Sua cidade natal é Taiwan (Formosa)?

MESTRE CHEN: Sim! É uma ilha separada da China, na qual muitas pessoas das forças reais antigamente se refugiavam, devido à ascensão do comunismo na China com Mao Tsé Tung. Então, meus pais foram antes disso para a ilha e acabei nascendo lá. Meus pais são de Futian, China.

MESTRE GILMAR: Com que idade se interessou pelo Kung Fu e decidiu seguir esse caminho?

MESTRE CHEN: Bem, lá em Taiwan, que já esteve dominada por outras nações, ainda bem jovem, li um livro sobre um lutador coreano de Karatê. Ele foi para o Japão e ficou famoso como lutador.

Participou de lutas livres, inclusive nos EUA (onde eram bem populares essas lutas), era o pós-guerra e o Japão carecia da existência de um herói. E esse cara conseguiu representar e divulgar muito bem a arte marcial, pois ganhava muitas lutas. Ao voltar para o Japão, ficou conhecido como um herói nacional, apesar de ser coreano, ele tinha nome japonês, e falava japonês.

Ao ler esse livro, fiquei entusiasmado para treinar arte marcial. Até aí, Formosa não tinha nada a ver com o continente. E o Kung Fu, desse lado de Shaolin, tinha muito pouca divulgação. Porque era fechado, não era aberto para Formosa, que era nacionalista.

Eu me lembro também quando criança, tinha uma mania. Meus pais colocavam os filhos em fila, para lavar os pés com água quente. Então tive uma ideia: Eu esquentava a mão com água quente. Do outro lado havia um morrinho com areia. E eu pensava, isso com 8 anos de idade, que para treinar eu precisava de areia e algo quente. Esquentava a mão, corria rápido e enfiava ela na areia, para fazer calejamento. (risos)

MESTRE GILMAR: Isso com 8 anos? (risos)

MESTRE CHEN: Sim, com 8 anos! Mas quando cheguei aos 11 anos, eu vim para o Brasil. Dois anos depois, em 1967, fui apresentado a uma pessoa que treinava na época, e ainda hoje treina com o Grão Mestre Chan. Fui levado para conhecer o centro social na Liberdade. O professor ensinava nos finais de semana lá, gostei do que vi e comecei a participar.

MESTRE GILMAR: Me fala um pouco sobre a viagem de Taiwan para cá. Foi difícil?

MESTRE CHEN: Bom! Foram 60 dias em um navio! Saímos de Formosa, paramos em Hong Kong, depois passamos por Cingapura, depois mar da China, depois costa da Indonésia, costa da África...! Visitamos nove países no sul da África. O navio era holandês e tinha mais ou menos 9 mil toneladas. Era pequeno comparado com os de hoje. Era a carga e os passageiros. Eram todos separados por nacionalidades no navio. Uma parte na proa eram os coreanos, no meio os chineses. No fundo, os japoneses. Japoneses e coreanos tinham rixa no pós-guerra, então daria confusão. Os chineses ficavam no meio, pra “quebrar o gelo”. (risos)

MESTRE GILMAR: Quando o senhor chegou ao Brasil, sabia algo do idioma português e sobre a cultura?

MESTRE CHEN: A única coisa que me fez ter contato com alguma referência sobre a América do Sul foi a história do romance “Robinson Crusoé”. Eu não tinha referência sobre o Brasil e muitos outros não tinham. Quando ficamos sabendo que iríamos imigrar para o Brasil, preparamos um monte de caixas. Levamos muitas coisas, porque não sabíamos do que precisaríamos. Eram móveis, panelas, roupas...! Achávamos que iríamos morar numa colônia fechada, protegidos dos animais selvagens. Não conhecíamos quase nada do que existia por aqui, idioma, política, cultura, etc.

MESTRE GILMAR: E você teve muita dificuldade na adaptação? Porque sabemos que são culturas bastante diferentes.

MESTRE CHEN: Bem! O impacto foi grande. Ainda mais sendo eu, uma criança. Eu tinha que carregar um dicionário, que além disso não tinha chinês-português. Tinha japonês com português. Como japonês tem uma escrita na qual 50% é chinesa, assim como português com relação ao latim,

ficava mais fácil para entender. Há derivações das línguas que facilitam. Eu aproveitava essa semelhança que tem na escrita e usava esse dicionário japonês para ir me virando. Um caso que sempre me lembro com relação a isso! Eu estava estudando na escola, era horário de almoço. A minha escola era de chineses e era frequentada por descendentes de chineses. Eu cheguei a comprar um produto, vendo uma embalagem e achando que haveria um bolo dentro, para ajudar na refeição. Quando abri, vi que era farinha e não um bolo pronto. Foi uma coisa que aconteceu e, que demonstra a dificuldade das pessoas imigrantes que ainda não dominam o novo idioma.

MESTRE GILMAR: Mestre, o senhor foi um dos idealizadores da Federação Paulista de Kung Fu, eu estava lá quando ocorreu a sua reunião, para tratar desse assunto. Gostaria que o senhor nos contasse um pouco sobre isso, de como surgiu essa ideia. Inclusive, na época, o senhor foi até a China para mostrar aos chineses que existia no Brasil um Kung Fu de qualidade, de tradição, um Kung Fu sério. Conta pra gente sobre essa experiência.

MESTRE CHEN: A legalização da modalidade desportiva Kung Fu aqui no Brasil, teve início quando vi um colega da gente chamado Carlos, que treinou conosco e foi para a Espanha. Lá eles tinham uma relação mais frequente (estreita, no caso com a China) do que o Brasil com a China.

Vi ele com bons resultados. Ele ganhou colocações interessantes. Em uma ocasião, ficou em 3° lugar numa competição, na qual participou por convite do governo Chinês. Até aí, no Brasil não tinha federação alguma. Vendo os resultados dele e conversando com ele, perguntei como seria essa relação, esse intercâmbio, e todo o processo com a China. Ele passou todos os detalhes pra mim. Na época, a relação Brasil-China era muito restrita. Havia uma barreira muito grande.

Não tínhamos quase nada vindo de lá para cá relacionado as artes marciais, e no Brasil não havia pessoas indo para lá para conhecer. Aqui no Brasil, naquela época, havia o Conselho Nacional de Desportos (CND), e ninguém tinha conhecimento sobre a nossa modalidade, nem de relacionamento com a China. Entramos em contato através do consulado e, com as informações que tinha desse colega nosso (Carlos), entramos com o Telex. RsRsRs!. Bem diferente de hoje, não é? RsRsRs! Tinha ainda a questão do fuso horário de até 12 horas. Ligávamos à noite, para falarmos com eles pela manhã lá. Então, eram 21h aqui e lá eram 8h.

Conseguimos uma, ou duas vezes, entrar em contato com o órgão que organizava os campeonatos na China. Em 1985, então, conseguiram entrar em contato com a federação aqui do Brasil. Eles estavam com inscrições abertas. Eles não conheciam a gente aqui no Brasil. Fomos convidados para participar deste campeonato em 1986.

MESTRE GILMAR: Na época as federações de artes marciais, tinham que estar associadas ao pugilismo, estou certo?

MESTRE CHEN: Sim. Porque até aí, todas as modalidades marciais seguiam um procedimento. Tanto no Judô, Karatê, Tae-kwon-do, etc. Porque o primeiro órgão oficial foi o de pugilismo aqui no Brasil. Tinha que estar filiado, vinculado e, ter um departamento dessa área.

MESTRE GILMAR: Mas voltando ao campeonato na China, vocês então foram para lá em 1986. Conseguiram mostrar para eles o que queriam?

MESTRE CHEN: Fomos para a China em 1986 e representamos o Brasil.  Fomos aceitos pelo governo da China. A Academia Sino-Brasileira foi a única representante legal do Brasil a participar do campeonato na cidade de Tianjin. Criamos uma delegação, elegemos uma equipe com dez pessoas (onze com o professor, mestre Chan kowk Wai) e fomos para a China. Quero ressaltar o espirito esportista e de união de muito dos nossos colegas da academia, que levantaram recursos financeiros para que eu e mais três pessoas (Sun, Cláudio e Mauro), pudessemos fazer a viagem.

Ao mesmo tempo, trouxemos ainda as normas e os regulamentos internacionais. Até então, haviam apenas 17 países participando, incluindo o Brasil. Hoje em dia, há entre 60 e 80 países. Ainda não conseguiram colocar o kung fu como modalidade olímpica, mas de maneira “regional”, já estão aceitando a modalidade.

(foto mestre Chan com a esposa)

MESTRE GILMAR: O nosso querido Grão Mestre Chan Kowk Wai,  é considerado um dos maiores nomes do Kung Fu tradicional no mundo.  Eu gostaria que você nos contasse um pouco dessa sua vivência com ele, já que o senhor é um dos alunos mais antigos dele.

MESTRE CHEN: Como diz um ditado: “Um professor é um segundo pai”. Então, para mim, eu o considero como um exemplo, uma pessoa da família. Um pai, um orientador. Alguém que não me deixa faltar as aprendizagens, apesar de não termos uma ligação sanguínea.

Eu só aprendi com ele, mas tem coisas que ainda não aprendi, talvez porque não soube explorar. Ele é um homem de poucas palavras e tem uma certa dificuldade de se expressar com a linguagem. Ele chegou aqui já depois de adulto, em 1960. Quero ressaltar também uma coisa! O mestre Chan K. Wai, é muito dedicado realmente. Ele veio para cá, com a finalidade de ensinar artes marciais. Veio de navio, em uma longa e difícil viagem, trazendo muita bagagem. Eram caixas e mais caixas só de armamentos e aparelhos de treino, para que ele pudesse ensinar de maneira adequada aqui.

Então, ele aprendeu e dedicou toda a vida dele, desde Hong Kong ou Cantão até aqui, a ensinar as pessoas. Isso não é pouca coisa. E ainda muitas vezes tendo que sobreviver ganhando bem pouco, sem contar toda a dificuldade de comunicação. Pense nisso! Não é para qualquer um!

MESTRE GILMAR: A maioria das pessoas ligadas ao kung fu não sabem disso, mas foi o senhor que introduziu o termo “Cati”, que foi muito utilizado no passado, para designar as formas do kung fu aqui no Brasil. Me conte como surgiu essa ideia.

MESTRE CHEN: Sim, é isso mesmo!  Antigamente, sempre que tentava explicar algo relacionado as formas (rotinas) do kung fu, precisava ficar comparando ao kata do Karatê japonês, para que as pessoas pudessem entender melhor. E isso, eu não achava certo. Porque Kung Fu é uma coisa e o Karatê é outra. A minha ideia era ter uma palavra que significasse um conjunto de técnicas do kung fu, com movimentos que simulassem o uso delas na luta, tendo início meio e fim.

Podendo ser um armamento como bastão, espada, facão, etc, ou as mãos nuas. Surgiu assim esse termo “Cati”, que é parecido com “kata”, para ficar mais fácil a pronuncia, entendimento e, a explicação na língua portuguesa. As pessoas começaram a escrever com K, "Kati", mas o correto é com C . Na realidade, "Cati" , são as iniciais das palavras: conjunto, artistico, treinos, integros.

MESTRE GILMAR: Atualmente um outro termo vem sendo utilizado pelas federações em suas competições, para fazer referência ao “Cati” (formas ou rotinas do kung fu). O termo utilizado agora é “Taolu”.

MESTRE GILMAR: Acho que o senhor sabe bem que hoje em dia, existem muitas pessoas que se dizem professores de artes marciais, mas que na realidade não tem uma procedência para tal.  Não tem uma genealogia tradicional, autentica e comprovada realmente. Na minha visão, acho que a Federação e os órgãos controladores, deveriam ter uma atitude mais rigorosa com relação a isso. Resumidamente: qualquer pessoa no nosso país, pode simplesmente abrir uma academia, começar a ensinar do jeito que ela quiser e, praticamente não há um controle sobre isso. Muitas vezes, essas pessoas são totalmente despreparadas, sem experiência e maturidade para o ensino, o que certamente pode prejudica a integridade física e mental aos alunos. Gostaria de ouvir sua opinião a respeito disso.

MESTRE CHEN: Isso não é só aqui. Às vezes, na China ocorre. Mas lá, como o poder é mais centralizado, eles tem um controle mais rígido. Quando comecei a treinar, naquela época a gente visitava uma academia nova sempre que surgia, para ver quem era o responsável, quem dava aula, quem era o mestre dele, etc. Houve o caso de um chinês, um velho, que apareceu e depois foi embora. Ficou essa incógnita. Eu cito uma academia em que visitamos na cidade de Osasco. Não lembro há quanto tempo atrás. Foi sugerido por um colega nosso visitar a escola, que supostamente ensinava um estilo dos animais. E realmente, quando chegamos lá, o cara começou a gritar e a berrar igual ao animal em questão. Não sei de onde ele tinha tirado aquilo, mas com certeza, não existia aquela forma de ensino. Não sou ninguém para ficar julgando os outros, mas aquilo era muito estranho. 

Um outro foi com o saudoso doutor Celso, da Pró-vida. Foi na Vila Mariana, na região da avenida Vergueiro. Ele passava lá perto desse local e via uma placa escrito “Kong Fu”. Ele me disse: - Ô Chen...! Vamos lá visitar aquela escola para conhecer o pessoal!  Saímos à noite, depois do treino, e fomos no carro dele, um Mustang branco. Chegando, a primeira coisa que fiz foi chegar no professor e perguntar do estilo que ensinavam lá. Ele não falava português, só coreano, então pedi para escrever em coreano mesmo. Coreano também tem semelhanças com o chinês. Aí ele escreveu. “18 movimentos – alguma coisa”. Era um treino acrobático, parecendo coisa de circo. Então escrevi para ele que isso não tinha nada a ver com Kung Fu e pedi a ele que não usasse esse termo para divulgar suas aulas, e que explicasse melhor aos alunos o que era aquilo. Certamente não se tratava de Kung Fu.

Acho que a Federação aqui, precisava ter um serviço próprio ligado a fiscalização. O lema pra eles é assim: “Melhor ter na mão, do que solto por aí”. Existe um outro lado nisso. Muitas vezes, não tem uma barreira para separar e distinguir.

MESTRE GILMAR: Fica algo muito generalizado. Precisa haver um certo controle de qualidade, penso eu.

MESTRE CHEN: Exatamente! A gente espera que futuramente as pessoas que fazem parte destas federações e academias possam ter um comportamento mais responsável, com relação a autenticidade e tradição.

MESTRE GILMAR: Para finalizarmos, eu quero agradecer-lhe, meu querido mestre Chen. Foi muito proveitosa essa nossa conversa. Deu para conhecer coisas sobre o senhor e sua história de vida, que até mesmo eu, que te conheço há tantos anos, não conhecia. A minha ideia, com essa nossa conversa, é para a divulgação. Porque aqui no nosso país, tem muitas pessoas de valor, que fizeram ou fazem a nossa história do Kung Fu e, que não são reconhecidas devidamente. Quando partem desse mundo, o que elas fizeram com tanta dedicação, vai se apagando e caindo no esquecimento.

Tenho essa postura de usar os meios de comunicação ao meu dispor, para divulgar e dar reconhecimento a todos que o mereçam. Sejam mestres, professores, alunos, etc. Quero que as gerações futuras conheçam e se lembrem dessas pessoas de valor e, do que elas fizeram em prol da nossa arte marcial. E que suas experiências e atitudes positivas, possam agregar valores para o futuro da nossa arte.

MESTRE CHEN: Sim! Se não tem registros e divulgação, com certeza vai se apagando com o tempo. Eu também quero agradecer a oportunidade. Muito obrigado.

 

(foto de mestre Chen fazendo seu primeiro quebramento em público)

 

 

Entrevista realizada em fevereiro de 2016
Arquivos da Associação Pak Shao Lin de Kung Fu

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